Programa Brasil Alfabetizado


No segundo semestre de 2003, a Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata (FFPNM/UPE) fez uma seleção de licenciades para participar do Programa Brasil Alfabetizado - organizado pelo Governo Federal com parceria estadual e municipal. Depois de uma formação especializada sobre o método freiriano e algumas informações técnicas, tivemos de escolher onde iríamos alfabetizar: eu escolhi uma sala de jovens em situação de reclusão na antiga Fundação da Criança e do Adolescente [Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco].

Tínhamos seis meses para alfabetizar. Em encontros semanais; totalizando dez horas. Para isso, teria de organizar as atividades de acordo com as da fundação. Para o deslocamento, era preciso pegar o ônibus institucional bem cedinho. O material, muito bem elaborado - para um período maior do que o estipulado - era todo disponibilizado pelo projeto.

Como conhecer os jovens sem temer? Os funcionários dos setores educacional e psicológico da  fundação ofereceram algumas orientações antes das aulas começarem. Fui apresentado pela responsável do serviço educativo, acompanhado do agente penitenciário, até a sala. Apresentei-me e começamos. Tudo tranquilo no primeiro momento. O desafio havia começado.

A partir do segundo encontro, algumas provocações testavam-me: "por que o senhor acorda cedo para vir até aqui se a gente vai continuar roubando e matando?". Deixei claro que todos eram meus alunos como os que tinha fora daquele espaço. Todos iguais. Não queria saber os motivos que trouxeram todos até ali. Não cabia a mim. Minha presença tinha outro objetivo. Muito maior. (Entretanto, todos os outros funcionários conheciam os jovens pelos "seus crimes"). (Celas eram reservadas para os mais "perigosos" e para os gays e trans. Consequentemente, excluídos do programa). (Muitos eram alfabetizados. Alguns não participavam de todas as aulas: iam quando queriam. Mas, de uma turma de 27 alunos, a maioria comparecia).

Quando eles organizavam rebeliões, cozinheiros e professores eram informados com antecedência. Aconteceram umas duas durante o período de alfabetização. Não houve aula. Quando havia alguma atividade pré-programada da fundação, também não havia aula. Além da alfabetização, havia aula de artesanato, capoeira e percussão. Sempre aproveitei para fazer as atividades não só com papel e lápis assim como não ficar apenas traduzindo sons no quadro. Era preciso dialogar. Humanizar.

Tesoura e apontador exigiam maior atenção. Ao recolher, era preciso de verificar um por um. Isso porque as lâminas são favoráveis a criação de ferramentas revolucionárias. Para as atividades geravam ótimos resultados. A relação som e imagem é uma ótima relação para a alfabetização. Sempre ganhavam destaque armas, bebidas, imagens religiosas - Maria e Jesus -, marcas de carros-relógios-roupas e mulheres. Exalava-se fé e ostentação: paradoxo denso e tenso.

Os mais interessados eram aqueles que resolviam o momento para converter-se: aprender a ler para ler a Bíblia. Vários assistiam a aula como se nada tivesse acontecido e eles estivessem na sua escola. Com as ocorrências e dilemas, preferi centrar-me na valorização da leitura de (seus) mundo(s). Assim, passei a ser provocado por eles ao questionar como se escreve assassino, cadeiahomicídio, latrocínio, revólver, tráfico e concentramo-nos a conversar sobre temas sociais. Ao longo do caminho, íamos conversando com as letras, as palavras e montando algumas frases. Palavras-geradoras, temas-geradores.

Para finalizar a caminhada, avaliei os alunos um por um sem seguir a avaliação final. Como trabalhar com o método freiriano e avaliá-los de uma forma ortodoxa? Consegui alfabetizar cinco alunos - o que foi uma felicidade; um sucesso. Muitos precisaram reforçar os aprendizados com mais uma temporada do programa sem mim. Uns seis desistiram. Foi depois desse desafio, entre 18/19 anos, que segui para a sala de aula da escola regular - depois de uma experiência com arte-educação e com alfabetização. Seria escola, prisão; sala, cela? O foco tornou-se "ser pra fora".


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Lembro que era muito comum escutar a mesma música quando alguns lavavam os pavilhões enquanto a aula acontecia. Era comum segurar o choro. Os pavilhões e a sala, separadas por um grande pátio com uma quadra de futebol e embaladas por esta canção:

Dias melhores
Jota Quest

Vivemos esperando
Dias melhores
Dias de paz
Dias a mais
Dias que não deixaremos para trás

Vivemos esperando
O dia em que seremos melhores
Melhores no amor
Melhores na dor
Melhores em tudo

Vivemos esperando
O dia em que seremos
Para sempre
vivemos esperando
Dias Melhores pra sempre
Dias melhores pra sempre
Pra sempre

Vivemos esperando dias melhores
Dias de Paz
Dias a Mais
Dias que não deixaremos para trás

Vivemos esperando
O dia em que seremos melhores
Melhores no Amor
Melhores na Dor
Melhores em Tudo

Vivemos esperando
O dia em que seremos
para sempre
Vivemos esperando
Dias Melhores pra sempre
Dias Melhores pra sempre

Anos depois, encontrei com um deles, à noite. Numa barraca de cachorro-quente no centro do Recife. Trabalhando com familiares. Reconheceu-me logo, (re)apresentou-se no final e recusou o pagamento. Ao lembrar, disse: "você foi meu aluno como todos os outros que tive; tenho de pagar como todos os que aqui comem". Abraçamo-nos, desejamos o melhor para nós e seguimos.

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Até tentei uma segunda turma em outro contexto com a amiga-professora Juliana Xavier: um turma pequena de senhoras evangélicas dentro de um centro espírita (Várzea, Recife). As receitas culinárias tornaram-se um elo entre elas: aulas de leitura/escrita e outra para cozinharmos. Durou muito pouco porque precisei deixar o projeto para finalizar com mais atenção e compromisso outro - de arte-educação. Mas ficou nítida a dinâmica ampla e substancial das mulheres para dentro e fora de suas famílias. Sem elas, nada.